Mundo sem Palco: Discurso de abertura Alkantara Festival 2014


"Obrigado por estarem presentes e serem tantos, neste evento onde lançamos a 13ª edição do Alkantara Festival – no ano em que a associação celebra o seu 21º aniversário. Vamos celebrar mais do que nunca, aquele que pode muito bem ser o último festival. Porquê?

Alkantara viu, nos últimos anos, o apoio da Direcção-Geral das Artes ser drasticamente reduzido: em 71% em relação a 2010, e em 55% quando comparado com 2012. Não é um caso único, num contexto de uma redução transversal nos apoios às artes. Mas é um caso extremo.
O corte radical não é resultado de uma avaliação negativa, mas sim consequência da própria arquitectura do concurso da DGArtes, que desvaloriza três eixos essenciais do funcionamento do Alkantara: o interdisciplinar, o internacional e o foco urbano.
Em 2004 mudámos o nome de Danças na Cidade para Alkantara, uma mudança que traduziu a evolução de uma associação que começou enquanto plataforma para a dança portuguesa e que gradualmente evoluiu para uma abordagem transdisciplinar. Um processo orgânico, que acompanhou as tendências no terreno, onde artistas atravessam cada vez mais as fronteiras entre as disciplinas. Contra esta tendência, a DGArtes reduziu brutalmente o orçamento dos apoios na área dos cruzamentos disciplinares: 400 mil euros para o país inteiro, face aos anteriores cerca de 2 milhões de euros. Uma intervenção incompreensível e contraditória à realidade artística. Alkantara foi assim obrigado a concorrer numa área que, já antes do início do concurso, tinha os cofres vazios.
Ao longo dos anos Alkantara enraizou-se profundamente no tecido cultural e social de Lisboa. O Alkantara Festival é um festival da cidade. Organizámos encontros e projectos sobre Lisboa (ainda no ano passado montámos um City Lab Lisboa, um seminário intensivo com 15 artistas internacionais em várias comunidades da capital, no âmbito do projecto europeu Global City/Local City). Organizámos formações de dança na Cova da Moura. Temos um papel essencial no evento Artista na Cidade. E neste momento, estamos a trabalhar num City Book Lisboa (com escritores como José Maria Vieira Mendes, Patrícia Portela, Dulce Maria Cardoso, Tim Etchells e Sus Van Elsen, a fotógrafa Maria Fialho e outros), parte de um ciclo de retratos literários de cidades do mundo.
No último concurso da DGArtes este foco urbano foi explicitamente penalizado. Perderam-se pontos por estar a operar em Lisboa. Consequência disso, uma parte considerável das organizações dos cruzamentos disciplinares procurou uma saída através dos nomeados apoios tripartidos (contrato entre a organização, a autarquia e a DGArtes), uma tentativa louvável de dar uma nova vida às instalações municipais espalhadas pelo país. No entanto, incompreensivelmente cada câmara, seja Lisboa ou Tondela (só para dar um exemplo) tinha direito a integrar apenas uma candidatura tripartida, com o mesmo patamar de 400 mil euros.
Temos a grande sorte em Portugal de ter na área das artes performativas algumas organizações absolutamente extraordinárias fora dos centros urbanos. Mas isso não invalida que esta aplicação do sistema dos tripartidos seja essencialmente antidemocrática e prejudique as organizações a operar, bem como o público, em cidades como Lisboa ou Porto, confrontando as suas câmaras municipais com uma impossível Sophie’s Choice.
A visão do Alkantara é explicitamente internacional e reflecte as tendências no terreno, inspiradas por uma maior mobilidade e um crescimento de colaborações entre artistas de países e culturas diferentes. O enquadramento internacional oferece-nos um contexto para enfrentar questões essenciais sobre centro e periferia, sobre global e local, temáticas centrais no programa do festival.
Esta visão internacional ficou claramente ausente no último concurso da DGArtes. Se a palavra ‘internacional’ aparece, é num contexto bastante ‘one-way’: vai procurar financiamento para artistas portugueses no estrangeiro. Soa quase a uma variação mais sofisticada da canção da emigração. Aqui a apresentação de espectáculos estrangeiros, ou a participação activa nas redes internacionais, não têm lugar.

Talvez não estejamos sempre conscientes, mas temos hoje em dia em Portugal, o privilégio de ter uma geração excepcionalmente forte nas áreas de teatro e da dança, isto sem descurar a geração anterior. Basta olhar para o outro lado da fronteira com Espanha para perceber a nossa riqueza. Tenho a convicção que a presença do Alkantara, e outras instituições com um olhar internacional, jogou e joga um papel essencial nesta fertilidade artística.
Alkantara construiu, ao longo dos anos, uma reputação internacional de fazer muito com pouco dinheiro. Desenvolvemos estratégias que nos permitiram participar em redes internacionais onde os outros parceiros à volta da mesa sempre tiveram uma capacidade financeira muito superior mas onde, com a nossa energia e o nosso conhecimento do terreno, conseguimos contribuir de forma determinante.
A situação financeira actual também ameaça a nossa credibilidade nestas redes.
Interdisciplinar, urbano e internacional: três eixos essenciais do Alkantara que provaram ser incompatíveis com o último concurso da DGArtes. Podem dizer: foi um concurso, os contornos eram conhecidos, o Alkantara foi avaliado.
Mas um concurso da DGArtes não faz parte das leis da natureza. Traduz uma linha política. Uma política cultural onde um festival internacional, urbano e contemporâneo, transdisciplinar e crítico não tem lugar. Que propaga uma restauração: os artistas voltam aos quadros. Bailarinos dançam, actores fazem teatro, basta. Uma política cultural que é conservadora onde devia arriscar e abrir novos horizontes, e que deita fora o que devia conservar.
É verdade que esta edição se tornou possível in extremis por uma intervenção extraordinária e única da parte da Secretaria de Estado da Cultura que assim permitiu, dentro do orçamento global da associação, transferir alguma verba para o festival.

Reconhecemos que esta Secretaria de Estado corrigiu, de forma pontual, uma lacuna do concurso da DGArtes. Mas a questão aqui é estrutural: financiamento público das artes não devia ser uma questão de intervenções extraordinárias e de gratidão. Devia ser a consequência de uma política clara e transparente, onde um governo democraticamente eleito tem a obrigação de apoiar a arte contemporânea e crítica, mesmo quando a crítica se dirige contra as suas próprias convicções; uma política virada para o futuro, com a coragem de avaliar projectos artísticos com base na qualidade e na capacidade de colocar questões fundamentais sobre estes tempos tão complexos.
No final do ano, o Alkantara conta voltar a candidatar-se a um subsídio estatal. Sem um sinal claro da vontade política de manter um festival internacional contemporâneo de artes performativas em Lisboa, não repetiremos o tour de force desta edição 2014.
Celebremos este Alkantara Festival como se fosse o nosso último.
Thomas Walgrave"


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